sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Contabilizando a gentileza humana

Algumas das coisas muito difíceis (porém não impossíveis) de se contabilizar podem surpreender por serem, justamente, incontáveis. uma delas, por exemplo, é a gentileza humana. Não se contabiliza, até onde se aprende nas aulas de matemática do ensino fundamental ou dos estágios intermediários dos cursos de inglês, esta virtude raramente presente nos mamíferos de polegares opositores. No entanto, é importante ressaltar a não-impossibilidade de se contabilizá-la. Caso não tenha ainda compreendido, pegue a calculadora mais próxima, atire-a contra a parede, livrando-se dela o mais rápido possível, e venha se aventurar no fantástico mundo exterior das relações interpessoais.
Imagine-se adentrando um ônibus. Isso mesmo,  aquele veículo de transporte público que preza pela locomoção coletiva ao invés da individual, pela qual pagamos agora três reais e cinqüenta centavos para utilizarmos. Imagine que você passa a catraca, ainda reclamando por esse absurdo aumento que há de gerar mais lucro para camadas da sociedade as quais você jamais pertencerá.
Agora, depois da catraca, você avista um banco, dirige-se a ele, pede educadamente uma tímida "licença" a quem está do lado, e por fim, senta-se ao lado deste semelhante seu, um outro ser exatamente como você, e ainda assim, provido de toda a sua individualidade, quiçá a característica mais fascinante dos seres de nossa espécie. Até então, estão absolutamente em harmonia. Independentemente de credo, classe social, gênero, cor, orientação sexual, vocês são dois seres da mesma espécie, e ponto. Exatamente como você ignora por completo o histórico político-econômico-social-psicológico deste ser, ele também ignora o seu, e por enquanto é o que tem em comum, além da espécie e consequentemente os medos e desejos inerentes a ela, talvez um punhado de características físicas, mas só.
Eis que nessa paz, de apenas sermos quem somos e deixarmos ser quem quer que seja, sem questionamentos, surge um atentado ao prosseguimento da situação, que  mudará por completo a forma como você encarou os fatos sobre aquele ser ao seu lado. Que mudará talvez até mesmo a sua fisionomia, para o resto do dia. Que mudará até mesmo a sua fé na natureza humana. Um ato de radicalismo, um ato de extrema gentileza.
Utilizando-se  de seus fantásticos polegares opositores, o ser ao seu lado abre o zíper de uma bolsa, estes dois últimos, provas concretas da modernidade e do comportamento social pós-moderno, e de dentro da bolsa ele tira nada mais, nada menos que: um tablete de aproximadamente quinze centímetros de pé-de-moleque. Embalado. Acabou de sair da lojinha de um real. Provavelmente, foi fabricado em alguma cidade do interior, talvez até mesmo tenha vindo de outro estado. A pessoa abre o pacote.  Perfeitamente normal, sim. Até o momento em que, num súbito ataque de simpatia aterradora, ela se vira para você e diz, num sorriso tranquilo: "aceita?"
Seu mundo é, neste momento, o submarino do capitão nemo, imergindo e emergindo sem controle num oceano de profundos sentimentos misturados, mas tudo acabou ali. Não houve cantada, não houve interesse, não houve sequer alguma outra intenção, naquela pequena palavra, além do puro oferecimento de um doce a uma pessoa desconhecida. Sim, é dificílimo acreditar, mas foi assim mesmo, um simples oferecimento, desprovido de qualquer malícia. Você tem vontade de chorar, você tem vontade de sorrir, pulando e se jogando num gramado inacreditavelmente verde e saudável, e correr de mãos dadas com aquele ser humano fabuloso ao seu lado, abraçá-lo fortemente, para que ele saiba o quanto é maravilhoso o que acabou de fazer pela restauração diária de fé na humanidade.
timidamente, você sorri de volta, dizendo baixinho: "ah, não. Mas muito obrigado/a". E sua vida segue, contabilizando incontáveis créditos de gentileza, internamente.

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