segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Ideal Vencido

Sabe, Renato,
Antigamente, quando eu tinha a tua idade, eu até achava que as coisas ficariam mais bonitas quando olhadas mais de perto, quando eu as olhava de longe. Era sempre assim, eu começava de uma boa distância, observando bem, interpretando do meu jeito de criança, criando tantas expectativas pro futuro e idealizando aquelas imagens, aqueles pedaços da vida, que me davam uma vontade louca de ir chegando mais perto, porque a expectativa é mesmo essa droga que faz com que a gente volte a ser criança de tanta curiosidade. Ah, Renato, como eu era ansiosa, assim que nem você, mesmo, né? Quando tu era bebê, as moças da cozinha sempre vinham até mim ao final do dia dizendo algo como: "ah, mas esse moleque é impossível, não tem jeito, de tão curioso qualquer dia ainda arruma pra cabeça", e eu ria, meio orgulhosa. 
Mas você sabe, o meu orgulho acabou-se. A minha ansiedade não tem mais motivos pra existir, meu filho, pelo simples fato de que naquela época eu tinha a persistência das crianças, mas a gente vai crescendo, vai arrumando mesmo um monte de coisa pra cabeça, e aos poucos, percebe que essa persistência infantil é só algo que assim, personificando a própria infância, até cresce dentro da gente, mas cresce livre, de um jeito que pode mudar e virar uma coisa completamente diferente do que era no começo, pode virar do avesso, e virou. Hoje em dia, essa persistência, que até a pouco tempo ainda me fazia continuar me aproximando do mundo pra ver se ficava mais bonito de perto, virou uma terrível consciência de que só vai haver desilusão. Os ideais, Renatinho, ah, eles estão tão cansados... Mas também, pudera... Foram tão surrados, não é? Teve a ditadura, teve o câncer do teu pai, teve tanta coisa que eu aliás já tô tentando esquecer, que eu fico até com dó dos pobres coitados dos ideais.
Ah, onde eles estão? Devem estar todos amassados naquela cristaleira onde a gente guardava os bibelôs de árvore de natal, aonde todo fim de ano eu ia, abria a portinha, pegava os ideais de novo e colocava na cabeça para serem flagelados novamente no ano seguinte: regime, vida nova, sexo, economia, intensidade, ah, uma mistura imensa, acho até que uma coisa virava exatamente o oposto da outra, ficava tudo uma grande bagunça e lá pra maio os ideais voltavam todos escondidinhos pro cantinho deles na cristaleira. Maio é um mês ingrato, um mêzinho miserável, mesmo. Porque pior que qualquer extremo é o meio, e pior que o meio é o meio do meio. Maio é tão meio que parece meio até no nome, olha que desgraça. Em maio acontece sempre alguma besteira, incrível. E foi em maio que ele se foi, o teu pai, o único homem que eu amei na vida. Ele sim foi alguém de ideais inabaláveis, e é bem provável que essa era a coisa que eu mais amava nele, aquela obstinação, aquele desejo de viver por algo.
Olha, Renato, com o tempo os ideais vão virando memórias... E ainda assim a gente tem que se dar por satisfeito quando viram, porque tem gente que nem isso tem mais, acaba esquecendo é tudo. Mas eu lembro dos meus... Eu idealizava tanto, eu sempre chegava mais perto pra ver o bonito ficar mais bonito, e mesmo quando, na grande maioria esmagadora das vezes o bonito idealizado se transformava num horroroso, eu estava lá, feliz, porque tinha pelo menos tentado, e não podia ser tão feio assim, tudo tinha lado bom. Mas agora, meu amor, agora tudo é passado. Dizer que não existe lado bom na vida é mentira, seria muita ingratidão da minha parte, sendo que eu tenho você, as suas irmãs, sendo que eu tenho tanto na minha história, mas chega uma hora em que tudo o que é a parte boa da vida fica pra trás, e a gente tem que aceitar a parte oposta à vida. Eu estou aceitando a minha morte, muito contente e satisfeita por ter tido uma vida assim tão cheia de ideais, e sabe por quê? Porque eu tive ideais, e porque eu lutei por eles, sim, por mais que eles não correspondessem à verdade inevitável que vinha depois e pousava sobre nossas costas. Eu vou embora feliz, porque de longe assim, a vida até parece uma coisa linda, e agora eu já tenho aqueles ideais todos desistentes, num sofá de espera do purgatório, e eu prefiro mesmo é não criar mais expectativas sobre aquilo que já é bonito. A certeza e a seriedade da morte já me conquistaram.
Adeus, meu filho.