terça-feira, 31 de março de 2015

Tragédia de fins desconhecidos

Para assuntos de negócios
Sempre soube não bem prestar
Espantou-se em também falhar
Como impulso de seus ócios

Desandou a então cair
Em profundo desassossego
Que seu peito em desapego
Queimava em dali sumir

E seu desejo era tão forte
De não mais desiludir-se
Que vindo novo a partir-se
O coração que era seu norte

Rendeu pranto do mais fino
Lamentava a toda lua
Caminhando nesta rua
Que se chama desatino.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sonho de consumo

Eu queria morar
Numa rua sem saída
Na esquina daquela avenida
Ou em qualquer outro lugar

Dormir quem sabe
Nesse túnel de chão imundo
No meio desse louco mundo
Antes ou depois que se acabe

Viver numa casa de praia
Caminhar sob o cinza do céu
Nas tardes do outono ao léu
Melancolizar à toda gandaia

Queria estar tão distante
E correr longe, livre do ego
Queria não morar; desapego
Queria do sol ser amante.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Força, Nicola

A minha história com o Nicola começou ano passado, quando eu ainda trabalhava em uma escola. Na época, meu aparelho de celular pifou, e tive de comprar outro, exatamente pelo mesmo motivo que um peixe precisa de uma bicicleta, a partir do momento em que todos os peixes como ele convencionarem que peixes precisam de bicicletas para viver. Pois bem. Comprei. Troquei também a operadora e o número da linha, mas aí já foi por burrice, mesmo.
Desde então, minha vida mudou. E foi aí que o Nicola surgiu. Não sei dizer se para o bem ou para o mal, mas o que importa é que, mesmo nunca tendo conhecido, de fato, o Nicola - e é provável que nunca venha a conhecê-lo -, ele já faz parte de mim. Está sempre presente, é um cara por quem cultivo, senão um grande afeto, ao menos muita solidariedade.
O ocorrido, de forma mais objetiva, foi que logo alguns meses após adquirir a linha e aparelho atuais, o recebimento muito frequente (quase diário) de mensagens depreciando o crédito e o nome do Nicola vem atormentando minha existência. Dizem que ele tem dívidas, pendências absurdas há muito tempo (acho minimamente deselegante uma empresa que passa essa sorte de informações sobre seus clientes a terceiros, que nada tem com a suposta dívida alheia). Pedem, de forma nada discreta, que ele pague algo que, segundo as mensagens, ele deve a alguém.
A princípio, pensei tratar-se de uma daquelas pegadinhas muito divertidas que os presidiários mais espirituosos nos passam quando entediados pela ineficiência do sistema carcerário brasileiro, mas logo percebi, quando das mensagens escritas, passei a receber ligações com vozes femininas cansadas pela exploração da classe operária de telemarketing, que aquilo tudo era mais uma obra ardilosa de uma dessas grandes corporações, para constranger o pobre Nicola diante de mim, que nem sequer o conheço.
O sistema novamente mostra-se muito mais perverso e insidioso do que podemos acreditar que fosse. É terrível pensar que o Nicolinha seja assim gratuitamente difamado, sabe. Nem direito à defesa ele teve, coitado. Esta empresa a qual, por sinal sempre preservou seu próprio direito de imagem, me faz temer pela vida financeira de Nicola.
Hoje disseram-me por mensagem de texto, que seu processo transita em cartório, talvez muito em breve ele tenha de responder judicialmente por isso; espero sinceramente que ele possa livrar-se dessa terrível acusação. E por último, se não for pedir muito, espero também que parem de me ligar à procura do Nicola, porque eu juro: não conheço ninguém com esse nome, nem tenho seu contato real.

segunda-feira, 16 de março de 2015

O homem ao portão

Havia um homem ao portão de uma das casas da avenida principal. Ficava sempre lá, de pé, acenando aos carros que por ali passavam, fosse em alta velocidade, impossibilitando seus motoristas apressados de vê-lo, ou fosse lentamente, de modo que pudessem portanto distinguir sua fisionomia avançada em idade em meio aos vultos da cidade. Muitos, suponho, nunca o tenham visto, e muitos mais possivelmente nunca o virão, posto que o tempo é cruel e implacável, e a vida nos escapa pelas mãos fechadas como as águas escapam aos continentes.
Todavia, para ele, isso pouco parecia incomodar, e independentemente da chuva ou da luz rasgada do sol do meio dia, ele estaria sempre lá, no portão. Seu compromisso afinal, não era com a hipotética retribuição por educação ou por pena - muitos julgavam-no louco -, mas sim com o simples gesto de acenar, a quem quer que passasse na frente de sua casa.
Acenava, inclusive muitas vezes para mim, em meus dias mais tristes e vagos, sem esperar qualquer resposta, mesmo. Descobri anos mais tarde: assim seria o tão famigerado ato de amor.

Contravenção

Subiu logo ali mais um diabo de concreto
Caiu mais à frente outro homem faminto
Foi condenado mal do humano o instinto
Para o maldito seguir e gerar lucro direto.

Será então tributada, toda forma de afeto
Os transgressores terão o direito extinto
Caso haja desordem em qualquer recinto
Onde o diabo tenha implantado seu feto.

Mas fiquem já alertados estes astutos
Que queiram lucrar sobre nosso sentir
Ainda que tenham cães pesados e brutos

Não será suficiente taxar nossos minutos
Haverá o amar e o fundamento de existir
Haverá todo afeto, mesmo sob tributos

domingo, 15 de março de 2015

Culpa

A ignorância maior
Não surge dos que não tem
O acesso ao conhecimento

A sua face pior
Nasce das entranhas de quem
Os larga ao esquecimento.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Adaptação

Corre nos ciclos desse jogo
Findar de princípio mudo
Saber o pequeno de tudo
Queimar em querer o fogo

Pender por justiça ou por paz
Chorar como (rio) do terror
Sangrar e sofrer, e ter dor
Ardendo em tesão no que faz

Compete ao ser toda a sorte
De coisas, de vidas, de boas
Até que por fim vem a morte

Compete invadir o inferno
Roubar a cabeça do diabo
Voltando antes do inverno.

terça-feira, 10 de março de 2015

Crise da crise

Passado o tempo do eu abstido
Volveu correndo à doce morada
Que sabia não ser coisa ordenada
Largar assim ao favor esquecido

Nunca haveria mesmo de ter  partido
Fosse a paixão uma causa pensada
Mas sendo de ardil natureza intrincada
Sem convite ocupou o seio escolhido

Eis que porém arrepende-se agora
Mas que nunca ousasse voltar
Antes o faça, mesmo com mora

Bom é o tino que assim aflora
Já que de vida só se leva provar
Vive o de dentro e também de fora.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Deu ruim

Levou um bolo
Comeu com sorvete
Não foi consolo
Chorou pra cacete

Ligaram de madrugada
Correu logo atender
Era engano ou roubada
Quis na hora morrer

Se fosse contar na fila
Virava causa de riso
Mas sua graça, tranquila
Debandou sem aviso