quinta-feira, 28 de julho de 2016

Coração pesado

Mais um coração pesado
      Flutuando
pelas ruas, toneladas
dessa vida de São Paulo

se é clichê
ou poesia
fica à mercê
da freguesia

tantas vozes
todas as faces
e os afazeres
para mais tarde

lindas faces
são as passantes
de transeuntes
no passo do alarde

mais um coração, pesado
        levitando
por essas ruas toneladas
de tantas praças, paulistanas

e se houver por quê
de uma regalia
pegue-a pra você
no som da alegria

são esses viventes
que vivem, são Paulos
transparentes
de dor e de flores
a se confortar
e com muitos perdões
a se conformar

      E amém
      E axé
      E paz,
      meu bem.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Três carioquinhas

Dois carioquinhas
na areia da praia às dez da noite
um de camisetinha, outra de biquíni
dois carioquinhas
ora, senão são três
chega o terceiro, correndo de bermuda
mal pode pisar na areia funda,
é menor do que os dois primeiros
brincam, os três carioquinhas

Jogam água,

     Jogam areia

           Levam bronca

E voltam a jogar água

Pulam!

E quando pulam,
Água pula junto deles
os seus pés minúsculos
levantam do mar, trazendo
uma força que ninguém conhece
e a água os segue

Sempre bom saber
que já fomos carioquinhas.

domingo, 27 de março de 2016

Mazelas de madrugadas

Pagadas as dívidas

Ruma- se às dádivas

De vidas passadas

Em águas tão ávidas

Por veredas em dúvidas

De fato:

Resumo é o indulto

Ao ligeiro insulto

De conteúdo adulto

Nas vias de um culto.

Seja o circuito

Seja o insídio

Seja o açoite

O gratuito, o deicídio ou a noite

Sempre jaz

Já alguém

Antes mesmo de morte.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Um dia meio

Há sempre um bom dia para se tomar um arzinho...
                                        Por algumas décadas
                                                              Em outra galáxia.
Um dia daqueles nos quais a atitude mais certa
é esperar o próximo dia chegar.

Nesses dias, os dispositivos móveis
tendem a falhar
Os automóveis
Tendem a falhar
Os móveis
Tendem a falhar

...
Na verdade, tudo aquilo que possa vir a falhar
tende
a
falhar.
Mas não desanime,
Porque um dia ruim
sempre precede outro pior
e um dia pior
precede outro dia ruim
que será seguido por outro
dia
meio mequetrefe.
O lado bom de um dia mequetrefe, no entanto,
é que nele você tem livre arbítrio
para usar a palavra
                                                                     MEQUETREFE.
                                         (ouparaousarescreverpoesiaconcretasemavisoprévio)
Use-a sem moderação.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Canto do bardo

Chegamos ao ponto,
Amigos, campeões
Em que resolvemos
Se o que beberemos
Serão celebrações
Ou lamentos em conto.

É chegado o instante
De nossa absolvição
Nosso grito de guerra
Ressoe por toda a terra
E por essa paixão
Marchemos avante.

Eis a hora do som do clarim
Anunciem os amantes antigos
Que passaremos convictos
Que mesmo não invictos
Sobre todos os perigos
Nosso fôlego reinará ao fim.







quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A vida

É um furo na bota
É um tiro no pé
Um piano sem nota
Um chuchu feito em picolé

É uma paz
Um calor
Boa, livre e fugaz
É um desdobramento do amor

É um porre colossal
De rum vagabundo
Na véspera do funeral
De um amigo moribundo

É um choro de alegria 
Um tesão sem tamanho 
O cessar da agonia
No caos completo do rebanho

É um bolo de dinheiro
Mas de tempo antigo
Em território estrangeiro
De país inimigo

É o espanto
O primeiro movimento
É toda forma de encanto
Contida num só momento

É foda
É a falta dela
Invenção de moda
Armada a tragédia mais bela

É passageira
Conflituosa
É ela assim, tão faceira
A vida é maravilhosa. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O dia em que descobri a democracia

Com os pés saltando para fora da cadeira de madeira, na época em que eles ainda ficavam pendurados, sem tocar o chão, estava eu, assentada sobre o lugar que me cabia no adorável macrocosmo da pré-escola. As mãozinhas, pequenas e, provavelmente, ainda sujas da areia úmida do tanque do parquinho - onde, muitas vezes, perdíamos aparelhos, óculos e afins, movendo ações coletivas de busca pelos objetos dos companheiros -, aguardavam, com moderada ansiedade, as instruções preciosas daquela que viria a ser nossa maior diplomata, representante do portal de acesso à toda a racionalidade humana para crianças de cinco anos e responsável mor pelo estabelecimento de relações diretas entre o nosso mundo e o externo. 
Compartilhando deste momento pimpolho, meus fiéis comensais de todos os dias, Giovanni (que engoliu uma moeda de vinte e cinco centavos e possuía uma glamurosa pasta de dente de três cores), Karen (que, fazia questão de lembrar sempre, morava na rua Alemanha), Vítor (de quem, com o perdão do descaso, não me lembro muita coisa, exceto a emblemática língua presa) e Emília (isso! Igualzinho a do sítio, não é demais?), igualmente empolgados, questionavam-se acerca dos assuntos de maior relevância em nossa pequena póles; as especulações sobre a atividade mimiografada que a professora distribuía, com a calma de todas as santificadas professoras de ensino infantil, amém, aumentavam à medida em que ela se aproximava de nossa mesinha quadrada. Cabecinhas mais curiosas erguiam-se como os suricatos, tentando descobrir, antes do tempo, o mistério do contorno a ser preenchido com nossos lápis e gizes de cera. 
Chegou, enfim, a nossa vez. Na folha, animaizinhos sorridentes compunham uma espécie de fazenda feliz, sem empregados ou cercas. Eu, particularmente, achava aquilo tudo muito estranho. Recebi minha folhinha, e pus-me a analisar, com certo rancor e desapontamento, que todos os desenhos de bichinhos na folha pediam cores que, ou eu não possuía em mãos, por serem muito específicas, ou, particularmente, detestava. 
Era o caso, por exemplo, do polêmico "cor-de-pele", que já começava errado por seu nome não fazer o mínimo sentido. Primeiro, porque essa cor não existe. Segundo, porque não somente eu não tinha aquele tom de pele, como também não havia conhecido, em todos os meus cinco anos de experiência vital, um ser humano sequer que o tivesse. Em contrapartida, se por um lado, os seres humanos não eram "cor-de-pele", os porcos, pelo outro, eram exatamente daquela cor, por baixo da lama.  
Havia, lá, na minha atividade, um porquinho simpático. Eu nunca tinha visto um porquinho simpático, pelo simples fato de porcos não falarem, é óbvio. Mas isso, deixei passar, por mera indisposição para discussões desnecessárias com meus prezados colegas, aparentemente muito contentes com seus bichinhos simpáticos. 
Foi quando, com o tal do cor-de-pele (de porco) a postos, comecei a preencher, solenemente, o meu porquinho de comportamento duvidoso para sua espécie. Mas um terrível incidente desviou o foco de minhas atenções, drasticamente. Dei de cara com a insustentável situação de ter, bem ali, diante de mim, a Emília, colorindo seu porquinho figurão com o giz azul. Absurdo. Não, não. Inaceitável, mesmo.Com aquilo, não pude me conformar. Como é, meu deus, que alguém podia assim, sem mais nem menos, alterar a ordem natural das coisas, pintando um porquinho de azul? Meu primeiro impulso foi o de, com muita calma e paciência, dizer à minha amiguinha que aquilo era muito errado. Seria melhor voltar atrás, usar o truque da borracha molhada, apagar aquele erro homérico e seguir a origem da natureza suína, como a conhecemos. 
A princípio, como se pode imaginar, minhas advertências não surtiram efeito algum, e a Emília, resumidamente, não se esforçou minimamente para responder minha afronta. Insisti. Foi quando, num súbito de esclarecimento e consciência política visivelmente superiores a muitos membros do congresso, a Karen bradou, a plenos pulmões, a máxima de libertação cromática que eu tornaria, anos mais tarde, meu mantra pessoal:
 - Cada um pinta da cor que quiser!
Eu estava desolada. Todas as minhas fortes bases conservadoras, naquele exato momento, foram por terra. Ao passo que, tentando procurar na memória um argumento que invalidasse o dela, não consegui encontrar nada que justificasse meu comportamento extremamente ditatorial e opressivo. Foi este o dia memorável em que, na praça, entendi o real significado de viver em harmonia. Daquele momento em diante, hoje percebo, todos nós nos tornamos mini-cidadãos verdadeiramente preparados para a vida pública.