quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Velho

Em uma gelada manhã de inverno daquele ano que mudou nossas vidas não exatamente para melhor, caminhava com muita dificuldade, debaixo de uma chuva fina e hostil, do tipo que ao cair faz um barulho que desafia a sair da cama e preparar o café, um senhor de idade já muito avançada, aos passos lentos que podiam dar suas pernas cansadas. A mão direita carregava, além das marcas da guerra e das saudades infinitas da mulher amada, um grande guarda-chuva preto que lhe protegia a cabeça branquinha da fúria pluvial, mas talvez – com certeza – não lhe protegesse da velocidade insana do tempo que lhe deixava para trás em sua caminhada, nem tampouco da tristeza com a qual a lembrança de suas perdas o castigava cruelmente ao andar sem rumo.
E sem rumo diz-se da caminhada deste senhor, pois em verdade seria mesmo muito difícil aos que tem ainda bons músculos e a predisposição a sorrir compreender os motivos dele, que já não mais dependia da atividade remunerada para sobreviver, para andar assim numa garoa fria e num horário tão peculiar, no qual somente os trabalhadores e estudantes deveriam ocupar as ruas daquela cidade demoníaca de nervosismo e pressões sinceramente desnecessárias. O que não sabem os que questionam motivos, é que mesmo até eles próprios, e principalmente eles são completamente carentes de motivos.
Continuava a caminhar penosamente por aquela calçada infestada de gente com muita pressa de chegar e pouco destino final em mente. Passo ante passo, aproximadamente vinte segundos de intervalo entre um e outro, atravessou a rua distribuindo aos motociclistas raivosos uma aflição que não era sua, mas deles, ao ver da situação.
Com pesar, chegou ao outro lado, e continuava sempre em um destino aparente. Conversou ainda, ou tentou conversar com um aluno de colégio particular que vestia um uniforme no corpo e outro na mente; foi ignorado. Tentou depois uma gordinha que se compadeceu de suas histórias, mas o tal do horário disse que não seria possível, e acabou tendo de ir a outro rumo.
Ia passando quase uma hora desde o início da caminhada, quando chegou por fim perto de uma praça com banquinhos de concreto molhados. Já muito desiludido pela impossibilidade do jogo de dominó que havia algum tempo não conseguia jogar, foi abaixar a cabeça quando a primeira lágrima caiu, mas uma voz um pouco distante, mas verdadeiramente próxima obrigou-o a reerguer o pescoço:
 - Ô, Joca, entre aqui, saia dessa chuva que não tem como o jogo ser aí hoje não, rapaz!

Viu num bar do outro lado da rua um senhor de pele escura e sorriso largo em camaradagem que há anos sempre lhe fora suporte diante de todas as chateações da vida. Os braços abertos e a chuva escondiam metade do que haveria lá dentro, mas logo percebeu tratar-se da mesa cheia de outros comparsas de tempos difíceis. Atravessou sem pensar a primeira via da rua de mão dupla, e sentia-se tão feliz naquele exato momento que nada jamais poderia estragar seu humor novamente. E não, nada jamais mudou seu humor, pois daquela maneira em que encontrava-se, com feição da alegria interminável de ganhar um dia perdido permaneceu eternizado seu sorriso. Ao atravessar a segunda via da rua, sua felicidade ignorou tanto o tempo e as amarguras do mundo, que assim como os jovens, não pôde importar-se com mais nada. Não importou-se portanto com a pressa de um daqueles milionários escondidos atrás de escuderias e cavalos de potência, e de felicidade então, foi esmagado por fim, pela arrogância dos homens.