Em uma gelada manhã de
inverno daquele ano que mudou nossas vidas não exatamente para melhor, caminhava
com muita dificuldade, debaixo de uma chuva fina e hostil, do tipo que ao cair
faz um barulho que desafia a sair da cama e preparar o café, um senhor de idade
já muito avançada, aos passos lentos que podiam dar suas pernas cansadas. A mão
direita carregava, além das marcas da guerra e das saudades infinitas da mulher
amada, um grande guarda-chuva preto que lhe protegia a cabeça branquinha da
fúria pluvial, mas talvez – com certeza – não lhe protegesse da velocidade
insana do tempo que lhe deixava para trás em sua caminhada, nem tampouco da
tristeza com a qual a lembrança de suas perdas o castigava cruelmente ao andar
sem rumo.
E sem rumo diz-se da
caminhada deste senhor, pois em verdade seria mesmo muito difícil aos que tem
ainda bons músculos e a predisposição a sorrir compreender os motivos dele, que
já não mais dependia da atividade remunerada para sobreviver, para andar assim
numa garoa fria e num horário tão peculiar, no qual somente os trabalhadores e
estudantes deveriam ocupar as ruas daquela cidade demoníaca de nervosismo e pressões
sinceramente desnecessárias. O que não sabem os que questionam motivos, é que
mesmo até eles próprios, e principalmente eles são completamente carentes de
motivos.
Continuava a caminhar
penosamente por aquela calçada infestada de gente com muita pressa de chegar e
pouco destino final em mente. Passo ante passo, aproximadamente vinte segundos
de intervalo entre um e outro, atravessou a rua distribuindo aos motociclistas
raivosos uma aflição que não era sua, mas deles, ao ver da situação.
Com pesar, chegou ao
outro lado, e continuava sempre em um destino aparente. Conversou ainda, ou
tentou conversar com um aluno de colégio particular que vestia um uniforme no
corpo e outro na mente; foi ignorado. Tentou depois uma gordinha que se
compadeceu de suas histórias, mas o tal do horário disse que não seria
possível, e acabou tendo de ir a outro rumo.
Ia passando quase uma
hora desde o início da caminhada, quando chegou por fim perto de uma praça com
banquinhos de concreto molhados. Já muito desiludido pela impossibilidade do
jogo de dominó que havia algum tempo não conseguia jogar, foi abaixar a cabeça
quando a primeira lágrima caiu, mas uma voz um pouco distante, mas verdadeiramente
próxima obrigou-o a reerguer o pescoço:
- Ô, Joca, entre aqui, saia dessa chuva que
não tem como o jogo ser aí hoje não, rapaz!
Viu num bar do outro
lado da rua um senhor de pele escura e sorriso largo em camaradagem que há anos
sempre lhe fora suporte diante de todas as chateações da vida. Os braços
abertos e a chuva escondiam metade do que haveria lá dentro, mas logo percebeu
tratar-se da mesa cheia de outros comparsas de tempos difíceis. Atravessou sem
pensar a primeira via da rua de mão dupla, e sentia-se tão feliz naquele exato
momento que nada jamais poderia estragar seu humor novamente. E não, nada
jamais mudou seu humor, pois daquela maneira em que encontrava-se, com feição
da alegria interminável de ganhar um dia perdido permaneceu eternizado seu
sorriso. Ao atravessar a segunda via da rua, sua felicidade ignorou tanto o tempo
e as amarguras do mundo, que assim como os jovens, não pôde importar-se com
mais nada. Não importou-se portanto com a pressa de um daqueles milionários
escondidos atrás de escuderias e cavalos de potência, e de felicidade então,
foi esmagado por fim, pela arrogância dos homens.