quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A vida

É um furo na bota
É um tiro no pé
Um piano sem nota
Um chuchu feito em picolé

É uma paz
Um calor
Boa, livre e fugaz
É um desdobramento do amor

É um porre colossal
De rum vagabundo
Na véspera do funeral
De um amigo moribundo

É um choro de alegria 
Um tesão sem tamanho 
O cessar da agonia
No caos completo do rebanho

É um bolo de dinheiro
Mas de tempo antigo
Em território estrangeiro
De país inimigo

É o espanto
O primeiro movimento
É toda forma de encanto
Contida num só momento

É foda
É a falta dela
Invenção de moda
Armada a tragédia mais bela

É passageira
Conflituosa
É ela assim, tão faceira
A vida é maravilhosa. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O dia em que descobri a democracia

Com os pés saltando para fora da cadeira de madeira, na época em que eles ainda ficavam pendurados, sem tocar o chão, estava eu, assentada sobre o lugar que me cabia no adorável macrocosmo da pré-escola. As mãozinhas, pequenas e, provavelmente, ainda sujas da areia úmida do tanque do parquinho - onde, muitas vezes, perdíamos aparelhos, óculos e afins, movendo ações coletivas de busca pelos objetos dos companheiros -, aguardavam, com moderada ansiedade, as instruções preciosas daquela que viria a ser nossa maior diplomata, representante do portal de acesso à toda a racionalidade humana para crianças de cinco anos e responsável mor pelo estabelecimento de relações diretas entre o nosso mundo e o externo. 
Compartilhando deste momento pimpolho, meus fiéis comensais de todos os dias, Giovanni (que engoliu uma moeda de vinte e cinco centavos e possuía uma glamurosa pasta de dente de três cores), Karen (que, fazia questão de lembrar sempre, morava na rua Alemanha), Vítor (de quem, com o perdão do descaso, não me lembro muita coisa, exceto a emblemática língua presa) e Emília (isso! Igualzinho a do sítio, não é demais?), igualmente empolgados, questionavam-se acerca dos assuntos de maior relevância em nossa pequena póles; as especulações sobre a atividade mimiografada que a professora distribuía, com a calma de todas as santificadas professoras de ensino infantil, amém, aumentavam à medida em que ela se aproximava de nossa mesinha quadrada. Cabecinhas mais curiosas erguiam-se como os suricatos, tentando descobrir, antes do tempo, o mistério do contorno a ser preenchido com nossos lápis e gizes de cera. 
Chegou, enfim, a nossa vez. Na folha, animaizinhos sorridentes compunham uma espécie de fazenda feliz, sem empregados ou cercas. Eu, particularmente, achava aquilo tudo muito estranho. Recebi minha folhinha, e pus-me a analisar, com certo rancor e desapontamento, que todos os desenhos de bichinhos na folha pediam cores que, ou eu não possuía em mãos, por serem muito específicas, ou, particularmente, detestava. 
Era o caso, por exemplo, do polêmico "cor-de-pele", que já começava errado por seu nome não fazer o mínimo sentido. Primeiro, porque essa cor não existe. Segundo, porque não somente eu não tinha aquele tom de pele, como também não havia conhecido, em todos os meus cinco anos de experiência vital, um ser humano sequer que o tivesse. Em contrapartida, se por um lado, os seres humanos não eram "cor-de-pele", os porcos, pelo outro, eram exatamente daquela cor, por baixo da lama.  
Havia, lá, na minha atividade, um porquinho simpático. Eu nunca tinha visto um porquinho simpático, pelo simples fato de porcos não falarem, é óbvio. Mas isso, deixei passar, por mera indisposição para discussões desnecessárias com meus prezados colegas, aparentemente muito contentes com seus bichinhos simpáticos. 
Foi quando, com o tal do cor-de-pele (de porco) a postos, comecei a preencher, solenemente, o meu porquinho de comportamento duvidoso para sua espécie. Mas um terrível incidente desviou o foco de minhas atenções, drasticamente. Dei de cara com a insustentável situação de ter, bem ali, diante de mim, a Emília, colorindo seu porquinho figurão com o giz azul. Absurdo. Não, não. Inaceitável, mesmo.Com aquilo, não pude me conformar. Como é, meu deus, que alguém podia assim, sem mais nem menos, alterar a ordem natural das coisas, pintando um porquinho de azul? Meu primeiro impulso foi o de, com muita calma e paciência, dizer à minha amiguinha que aquilo era muito errado. Seria melhor voltar atrás, usar o truque da borracha molhada, apagar aquele erro homérico e seguir a origem da natureza suína, como a conhecemos. 
A princípio, como se pode imaginar, minhas advertências não surtiram efeito algum, e a Emília, resumidamente, não se esforçou minimamente para responder minha afronta. Insisti. Foi quando, num súbito de esclarecimento e consciência política visivelmente superiores a muitos membros do congresso, a Karen bradou, a plenos pulmões, a máxima de libertação cromática que eu tornaria, anos mais tarde, meu mantra pessoal:
 - Cada um pinta da cor que quiser!
Eu estava desolada. Todas as minhas fortes bases conservadoras, naquele exato momento, foram por terra. Ao passo que, tentando procurar na memória um argumento que invalidasse o dela, não consegui encontrar nada que justificasse meu comportamento extremamente ditatorial e opressivo. Foi este o dia memorável em que, na praça, entendi o real significado de viver em harmonia. Daquele momento em diante, hoje percebo, todos nós nos tornamos mini-cidadãos verdadeiramente preparados para a vida pública. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

As flores e os muros

Lá em casa há flores brotando nos muros
E ao abstrair do seu concreto toda a dureza
As mudas falam de amores tão puros
Que até os muros decretam bela sua pureza

Quando a chuva, tão saudosa nos faz visita
E vem tocar outra vez os muros e as flores
Seu toque, de tanto que a toca, a incita
A verter o pranto que floresce novos amores

A luz nascente do sol traz os dias seguros
Faz sob os muros nascerem sombras espessas
A séria alvenaria forma desenhos mais duros
E as flores sorrindo, desenham formas travessas

Por vezes os gatos que vivem nos arredores
Vem pela noite sobre os muros caminhar
Atrás de quem possa abrandar os ardores
Da carne que vive a madrugada a pulsar

Nas noites que a lua preenche os céus tão escuros
Tão cheios de nós estamos cheiros e cores:
E as flores, vencendo os muros
E os muros, cedendo às flores.