segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Versinhos da inadimplência

Os poetas nunca oferecem
Presentes comerciais
Primeiro porque não tem dinheiro
E segundo porque a poesia
Oferece muito mais. 

Dizendo assim até parece
Que vive-se apenas de verso
A bem da verdade é quase isso
Exceto umas cervejas baratas,
Um cafuné e um olhar disperso.

Pena é pesar mais que o verso
Esse 'quase' que atormenta
Deixa a gente inadimplente
Vendendo a alma pela carne
Só pra ter o que alimenta.

domingo, 12 de outubro de 2014

Guia da auto-ajuda reversa

Nunca fui (nem tampouco desejo ser) boa conselheira, independentemente do âmbito do conselho: minhas sugestões sentimentais são ruins, as financeiras, péssimas e nem adianta criar expectativas para as estéticas; são piores ainda.  Eis que veio a mim, num dia desses, um amigo meio desanimado devido a falta de grana que tem enfrentado desde que saiu de casa. Recebeu uma proposta de emprego bem melhor, num lugar horrível e fora de mão, cujos horários provavelmente atrapalhariam seus estudos. Respirei fundo.
‘Olha, não fique assim, ainda tem alguns concursos, você pode tentar outras coisas, sempre tem uma oportunidadezinha aqui e outra ali, vai dar tudo certo, no final sempre dá certo... Até porque, no final, você vai morrer, mesmo.’  Parei por um segundo e pensei no que tinha acabado de dizer. Aparentemente, não é vista com bons olhos a mensagem otimista que fala sobre morte, mas ainda estou tentando entender o motivo disso. Afinal, não vamos morrer mesmo? Até o presente momento, não vejo outra alternativa.
Em outras manifestações desse meu pensamento torto, houveram protestos: “mas se a gente vai morrer mesmo, por que não cavar um buraco no chão e enfiar a cabeça dentro?” Ora, mas é justamente por saber que a gente vai morrer é que se matar se torna a coisa mais desnecessária. Pode-se muito bem poupar o esforço e o tempo que se empreenderia em tentativas de suicídio para usá-los em coisas bem mais divertidas, como por exemplo brincar com um gato, ler um livro ou comer pudim. “Há muito mais pudim entre o céu e a Terra, do que podemos pensar em comer”, já disse um sábio. Portanto, primeiro passo: esqueça o suicídio, ele é desnecessário e se você falhar, pode acabar se machucando feio, o que só causaria mais problemas.
Continuei a conversa com a estimulante frase: A vida não passa de uma grande fila de espera para o eterno consultório dentista que é a morte. Fui novamente contestada, onde é que já se viu, se animar uma pessoa citando mortes e dentistas. Mas não há nada que se possa ser feito: você sabe apenas que uma hora vai entrar naquela sala lazarenta, pode ser que doa e meio que não tem como ser a melhor coisa do mundo. Portanto, o que resta além de uns passatempos maneiros enquanto você ouve o barulhinho horripilante das máquinas e finge que não sabe do que se trata? Tudo depende da forma como você conduz sua fila de espera: tem gente que fica os quarenta minutos lendo a revista Caras de 2007, e tem gente que tem ideias, começa ou termina projetos. Você pode até conhecer um grande amor na fila de espera, e pessoalmente, conheço casos que comprovam essa hipótese.
O segundo passo é não se prender demais aos grandes impasses e relaxar: uma hora, você morre. Enquanto ela não chega pra você, continue numa boa.  No final das contas, as pessoas ao redor estão no mesmo barco que você. A última objeção foi sobre a demora, mas isso, creio que tenha sido bastante esclarecido: o dentista está ocupado, outras pessoas estão na sua frente, sabe. Dê o tempo, não banque o impaciente. A pressa é, além de inimiga da perfeição, um  grande mal presságio: quem tem pressa, quer morrer logo.  

Por fim, não seja mal educado com as pessoas a sua frente: elas podem cuspir propositalmente em algum material que o dentista vá usar em você, sem que ele veja. OK, este foi realmente um conselho estranho. Mas serve pra ilustrar o que a revista Caras de 2007 pode fazer com você.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O garoto do pão de queijo

Voltando para casa, tomei um ônibus no Ipiranga. Viajava em pé, pois não haviam mais lugares, e ao meu lado, sentada estava uma mulher muito magra, de aspecto quase doentio e expressão já muito sofrida, apesar de não demonstrar mais de vinte e cinco anos. No seu colo havia um molequinho pequeno de uns três ou quatro, comendo um pão de queijo e observando a rua pela janela. De repente, sentiu saudades do pai.
 - Ele tá na casa dele, fio.  – Causou algum desconforto essa notícia na criança, começou a se movimentar e chamar pelo pai mais vezes, e a mulher sempre dizia o mesmo. A vida que levavam, em toda a simplicidade, parecia complicada. Era interessante a forma como ele olhava para tudo, curioso, e ela, assustada, como quem não vive contando com muitos direitos, com muitas oportunidades. Quem vive rápido, com medo e com pressa, pra não perder o das crianças. Seu olhar cruzou ainda com o meu e fez um gesto de cumplicidade, um risinho curto e meio sem motivo que queria abrir ao mundo que nunca lhe abria nada. Foi nesse momento que pude sentir cada músculo do corpo virar pó diante da ingratidão cotidiana que carregamos pela vida, um pesado fardo que espero, ainda que numa esperança meio moída, o menino não carregue.

Ele por sinal, distraído e cheio de força, carregava já outro fardo, aquele que surge proporcionalmente com as medidas do corpo infantil deixando o primeiro estágio da vida. Mais tarde, será obrigado a pensar em algo que o faça feliz, porque a felicidade adulta não é natural como a infantil, mas vem com o tempo. E o tempo não tem relação amistosa com a felicidade. Um dia, aquele garoto tomará conhecimento dos mecanismos da vida, e tudo o que desejará é não ter conhecido o tempo. Um dia, terá necessidades não supridas e perceberá o quão cruel é a máquina social com seu óleo humano. Nesse dia, todas as suas esperanças serão destituídas, todas as suas forças serão testadas ao seu limite, e talvez o ultrapassem de tal forma que ele já não possa mais suportar a situação do amadurecimento. Terá crescido quando este dia chegar, e quando o mesmo for embora, terá se tornado um homem, marcado e cheio de preocupações. Durante todo o processo, sofrerá e se angustiará, em toda a sua vitalidade, com o medo da falta, com a subordinação injusta e obrigatória e com a fé na sobrevivência por um fio, para que quando todos os longos dias tornarem-se curtos e  acabarem-se, tenha por fim tudo de sobra, mas nenhuma força para poder vivenciar algo. Mas é de extrema importância que não pense nisso agora, pois pensar só lhe fará fazer menos, e ganhar nada. Um dia ele pensará e chegará à conclusão de que não foi feito para viver, mas sim para resistir. Resistir moral, religiosa e legalmente. Resistir enquanto puder, e diante de boa resistência, não será mais que um a mais. Faz parte de um jogo, onde começa tudo exatamente como ele começou, sem nada, para assim passar a vida toda, em todos os momentos de necessidade, e ao fim, quando a memória falhar e nem de suas necessidades possa mais se lembrar, tenha o bastante em suprimento para qualquer uma delas.

Desabafo

Todas as pessoas que eu conheço
Querem que eu arrume um emprego
Querem que eu penteie meu cabelo
Querem que eu comece do começo

Todas as pessoas ao redor
Querem que eu alcance o sucesso
Querem que eu conquiste o acesso
E tudo o mais que eu já sei de cor

Mas eu não quero em vão
Ter dez barões ao mês
O que eu quero mesmo é vagabundear

Eu não sirvo, não
Almofadinha, rico, nobre ou burguês
Se for assim, prefiro mesmo é "fracassar".

domingo, 21 de setembro de 2014

Nós

Silenciosa a doce fumaça do incenso
Brancas linhas preenche e som emite
Sombrio tom, som estranho e tenso
Som escuro, tom de cinza grafite

Nunca antes nós havíamos notado
Que fosse grafite tom de pó e cinzas
Ou quente âmbar fosse o chá gelado
Nós somos só dois velhos ranzinzas

Em formas estreitas e tubulares
Ela agita no céu e com toda cor
Confunde-se e mistura nos ares
Meu simples nu e teu grande pudor

O teu cheiro de falso indulgente
Traz à tona toda velha lembrança;
Quando se põe assim tão ausente
Só evidencia aquela semelhança

Entre as blusas de lã
Cinzas, de mesmo corte
Da loucura fiel e sã
Que é nosso ponto forte.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hora do cafézinho

Existem poucas experiências traumatizantes, na minha lista delas, cuja posição esteja acima do velho café açucarado. Destas nem vale muito a pena falar, foram realmente bem tristes. Mas as margens do rio de angústia que corre em meu ser transbordam e inundam todo o meu pensamento, ao menor traço de lembrança desse líquido monstruoso que se espreita e me persegue por entre lojas, escolas e mais variados ambientes de convivência que frequento desavisada.  Muitas vezes pensei em desistir, em nunca mais tomar café ou chá fora de casa, e aí foi quando me surpreendeu o hábito de perder a medida do açúcar.
No princípio, era muito claro: três colheres por litro. Mas acabava sempre que ninguém bebia, e eu sozinha não dava conta, as bebidas esfriavam e ficavam largadas sobre a mesa. Decidi fazer porções individuais, e me parece que foi uma péssima decisão, talvez até pior. A medida individual é uma coisa traiçoeira, insidiosa ao extremo, que te puxa pela incerteza e a pressa de continuar trabalhando, e te prende no mais profundo poço de amargura – não do café em si, mas sim da raiva que você sente quando percebe que desperdiçou mais um copo colocando aquela quantidade abominável de açúcar.
É uma sensação de impotência incomensurável, uma agonia sem fim. Você desenrola toda uma arte ao esquentar a água, adicionar as colheres de pó ou erva, observar aquela fumaça pra lá de filosófica no ar, o cheirinho inconfundível que denota sua deliciosa tarde cinzenta e reclusa, e eis que depois de tampar a caneca e esperar mais uns minutinhos para o último passo, vem lhe perturbar a irritante consciência de que em breve será obrigado a despejar o açúcar sobre a bebida. Dois minutos de pura tortura chinesa.  Você toma coragem e abre o pote de açúcar, e ele está ali, desafiador, naquela imensidão branca e satírica. É  quase como se ele tivesse vida, e te olhasse rindo porque você nunca vai acertar a medida do seu próprio paladar, porque você é uma exceção à seleção natural, porque você é um completo fracasso.

Você pega a colher, não admitindo seu verdadeiro pavor, e vai bem devagar, adicionando pontinhas de colher de chá de açúcar, para não errar. Prova. Percebe que foi muito pouco, e que o pote está ali, sádico, observando grão por grão que cai quando você tenta acertar. Depois da terceira falha, será tarde demais. E aí então, você novamente desiste, e bebe de um gole, ofendido e humilhado pelos povos do subcontinente indiano antigo que espalharam pelo mundo esta verdadeira peste que desce queimando sua garganta. 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

As aventuras do Meninão Carente da classe média

O Meninão Carente da classe média brada aos quatro ventos, para quem quiser ouvir, “que mulher gosta mesmo é de dinheiro, joias e carros luxuosos; quem gosta de homem é viado!”, quando, curiosamente, seu glorioso emprego como estagiário no escritório do primo do tio-avô não lhe garante o dinheiro suficiente para sustentar as supostas mulheres que gostam de joias, carros luxuosos e roupas de grife. Nem tampouco, para sustentar seu próprio discurso. Entretanto, ele continua sendo homem: os ‘viados’ lhe serão garantidos naturalmente.
Ele é jovem, mas já pensa no futuro: sabe que “existem dois tipos de mulheres: as que servem para se casar, e as que só servem para diversão”. E claramente, nenhuma das duas o querem, pois como o próprio meninão afirma, com orgulho, elas gostam mesmo é de dinheiro, roupas de grife, carros luxuosos e joias, que ele não pode comprar, nem por diversão, nem para casar. Pelo visto, o meninão carente da classe média não serve, nem para diversão, nem para se casar. De qualquer jeito, lhe sobram os ‘viados’ que ele tanto considera desprezíveis, abominações, segundo o que o padre diz, na igreja que a mãe o obriga a ir aos domingos.
Ele gosta de acreditar que essas feministas da internet são muito incoerentes, pois tratam de uma tal de libertação sexual – que ele não faz a mínima ideia do que possa vir a significar –, mas para ele, feministas de verdade são só aquelas mulheres feias que morrem solteiras e das quais ninguém gosta, por isso elas não tem qualquer motivo para desejarem algo relacionado a sexo. Ele sim, tem muito a desejar: as morenas, loiras, ruivas e negras que vê nos sites de pornografia – E só lá, já que na vida real, os únicos que lhe dão alguma atenção seguem sendo os ‘viados’.
Ele se orgulha muito por ser heterossexual, muito mesmo. Afinal, na sua condição de meninão carente da classe média que não pode sustentar seus discursos e suas mulheres, a tentação de se arranjar logo com os ‘viados’ é tanta, mas tanta, que o esforço feito para se manter macho deve ser recompensado com algum pensamento positivo. Por isso, ele levanta a cabeça, agride física e moralmente os ‘viados’ que encontra por aí, e continua, sem sucesso, sua empreitada que consiste em  agarrar garotas na balada e depois dizer que elas são umas “mal-comidas” – ele adora esse termo – se não quiserem ter a honra e o privilégio de se divertirem com ele.
O meninão carente da classe média vive uma eterna luta de resistência, uma luta muito grande, maior que ele... Na academia, puxando ferro, para parecer mais atraente. Andou tomando umas vitaminas parecidas com o Mucilon que misturavam no seu leitinho quando era pequeno, mas parece que elas, assim como as mulheres e os discursos, são difíceis de serem sustentadas. Resolveu parar e voltar quando for efetivado na empresa do primo do tio-avô, que cá entre nós, é ‘viado’.

Aliás, o meninão sonha, noite e dia, com sua promoção, com o dia que vai parar o cursinho, com o momento em que a meritocracia sorrirá para ele, com várias coisas que vão torna-lo um verdadeiro macho alfa de sucesso. Mas às vezes, assim, de mansinho, bate um sentimento de tristeza (juntamente com uma vontade de conhecer um ‘viado’). É que na verdade, o meninão carente da classe média, segundo seus próprios ideais, fracassou na vida.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sia-gussó

Sigo só
Nesse meu rap de burguês
Na minha contraditória insensatez
No meu campo de visão, que é só

Sigo são
Sendo vítima sempre feroz
Do mundo todo que decai veloz
Por entre os becos dessa imunda ilusão

Eu sigo só
Sem os românticos sem radicais
Deixando sem fundo a areia do cais
No confortável viver, só

Sigo sim
Com minhas lentes embaçadas
Nas vielas e ruas geladas
Sem dinheiro e sem rumo, fim.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Resumo

Existem Momentos no dia
Em que o sentimento é pura coragem
E tantos outros em que sua imagem
É o ato de maior covardia

Em confusão e nessa agonia
Frio enfatiza o fado da viagem
Outro vento sopra quente mensagem
Que toda perda tem valia

Do inimigo recosta ao seio
Que a cada instante tua face imuta
Tens a insídia e o asseio

Satisfaz apenas o anseio
Que seja essa desilusão absoluta
E o resto da vida é passeio.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Há Mais Coisas

Entre um e outro edifício
Se esconde uma nuvem e um pedaço
Do céu

Entre um recuo e um impulso
Se fez o suor e o cansaço
De ser

Entre A Luz e uma Sé
Caminham as sombras e formas distintas
De pressa

Entre uma perda e o sorriso final
Estão milhares de estranhos sentimentos
De culpa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ode À Voz

Sempre calma, vem chegando ao ouvido
Lentamente, há de invadir toda a sala
E com a conhecida serenidade da fala
Se abrirá no espaço, apertando o sentido.

Tranquilamente, o baixo tom imprimido
Alivia o desolado barulho, que cala
É uma voz linda, que jamais se abala
Ainda que em meio a todo o caos vivido.

Voz, que vicia ao âmago do ser
Cuja pacificidade é contágio voraz
Transformas o ouvir num excelso prazer.

Não desconfias do enorme poder
Mas ao sorrir tu transmites essa paz
E tudo o que é bom cerca esse teu viver.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Fotofobia

Enquanto a luz não revelar teu amor
Eu não hei de ansiar por ela

Ando com medo do que é muito claro
Temo às entranhas tudo que for óbvio
Já que o próprio fim é seco e sóbrio
Se a própria vida é de valor tão raro

Sejam as árvores ornamentais
Usem máscaras todos os rostos
Soará mais alta que os altos postos
A intrepidez das palavras reais

Enquanto enxergarmos nada além da dor
Não haverá sequer chama de vela

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Velho

Em uma gelada manhã de inverno daquele ano que mudou nossas vidas não exatamente para melhor, caminhava com muita dificuldade, debaixo de uma chuva fina e hostil, do tipo que ao cair faz um barulho que desafia a sair da cama e preparar o café, um senhor de idade já muito avançada, aos passos lentos que podiam dar suas pernas cansadas. A mão direita carregava, além das marcas da guerra e das saudades infinitas da mulher amada, um grande guarda-chuva preto que lhe protegia a cabeça branquinha da fúria pluvial, mas talvez – com certeza – não lhe protegesse da velocidade insana do tempo que lhe deixava para trás em sua caminhada, nem tampouco da tristeza com a qual a lembrança de suas perdas o castigava cruelmente ao andar sem rumo.
E sem rumo diz-se da caminhada deste senhor, pois em verdade seria mesmo muito difícil aos que tem ainda bons músculos e a predisposição a sorrir compreender os motivos dele, que já não mais dependia da atividade remunerada para sobreviver, para andar assim numa garoa fria e num horário tão peculiar, no qual somente os trabalhadores e estudantes deveriam ocupar as ruas daquela cidade demoníaca de nervosismo e pressões sinceramente desnecessárias. O que não sabem os que questionam motivos, é que mesmo até eles próprios, e principalmente eles são completamente carentes de motivos.
Continuava a caminhar penosamente por aquela calçada infestada de gente com muita pressa de chegar e pouco destino final em mente. Passo ante passo, aproximadamente vinte segundos de intervalo entre um e outro, atravessou a rua distribuindo aos motociclistas raivosos uma aflição que não era sua, mas deles, ao ver da situação.
Com pesar, chegou ao outro lado, e continuava sempre em um destino aparente. Conversou ainda, ou tentou conversar com um aluno de colégio particular que vestia um uniforme no corpo e outro na mente; foi ignorado. Tentou depois uma gordinha que se compadeceu de suas histórias, mas o tal do horário disse que não seria possível, e acabou tendo de ir a outro rumo.
Ia passando quase uma hora desde o início da caminhada, quando chegou por fim perto de uma praça com banquinhos de concreto molhados. Já muito desiludido pela impossibilidade do jogo de dominó que havia algum tempo não conseguia jogar, foi abaixar a cabeça quando a primeira lágrima caiu, mas uma voz um pouco distante, mas verdadeiramente próxima obrigou-o a reerguer o pescoço:
 - Ô, Joca, entre aqui, saia dessa chuva que não tem como o jogo ser aí hoje não, rapaz!

Viu num bar do outro lado da rua um senhor de pele escura e sorriso largo em camaradagem que há anos sempre lhe fora suporte diante de todas as chateações da vida. Os braços abertos e a chuva escondiam metade do que haveria lá dentro, mas logo percebeu tratar-se da mesa cheia de outros comparsas de tempos difíceis. Atravessou sem pensar a primeira via da rua de mão dupla, e sentia-se tão feliz naquele exato momento que nada jamais poderia estragar seu humor novamente. E não, nada jamais mudou seu humor, pois daquela maneira em que encontrava-se, com feição da alegria interminável de ganhar um dia perdido permaneceu eternizado seu sorriso. Ao atravessar a segunda via da rua, sua felicidade ignorou tanto o tempo e as amarguras do mundo, que assim como os jovens, não pôde importar-se com mais nada. Não importou-se portanto com a pressa de um daqueles milionários escondidos atrás de escuderias e cavalos de potência, e de felicidade então, foi esmagado por fim, pela arrogância dos homens.