domingo, 18 de janeiro de 2015

Acidez

Primeiro, a menina corajosa se escondeu atrás do móvel. Não queria aparecer de novo, mas não porque tinha medo, e sim porque... Bem, talvez fosse por ter medo, sim. Afinal de contas, por que as meninas corajosas não podiam sentir medo, às vezes? Tinha medo, a menina corajosa. Muito medo, e não somente do que pudesse ameaçar sua coragem e seu valor inquestionável, como também - principalmente - daquilo que tentasse, de má fé, extinguir por completo seu medo. Na verdade, ela tinha muito mais medo de pensar sobre deixar de ter medo, do que de qualquer outra coisa.
No fundo mesmo, a gente tem sempre dessas coisas, de se contradizer. Apesar de não parecer, por exemplo, a paciência, de vez em quando, se fantasia de pressa, e a pressa de paciência, e a repressão de desejo, e o desejo, de repressão, e assim por diante, até que nossa cabeça dê um nó e a gente não tenha outra opção a não ser finalmente deixá-la quietinha, sem pensar muito, enquanto o resto do corpo tenta segurar as pontas por sua conta e risco.
É certo que quando isso acontece, invariavelmente, algo há de dar errado; a cabeça é que foi feita pra pensar, e não o resto das pontas do corpo. Mas supondo que segundo os preceitos das grandes linhas de produção industrial (um claro exemplo de péssimo exemplo a ser citado, neste assunto), nada é insubstituível, em certos casos o melhor a se fazer é esquecer a função das pontas do corpo, e deixar mesmo que tudo siga religiosamente o tortuoso caminho da falta de caminho a ser seguido.
Dessa forma, a covarde menina, num ato de extrema coragem, deixou sua cabeça de lado, segurando as pontas com as outras pontas do corpo, e seguiu feliz o mais aterrador de seus medos: o de segurar as pontas, com outras pontas, ao mesmo tempo em que as entregava todas de uma vez a um terrivelmente  imprevisível destino... Sem pontas.

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