sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A perda da graça

Ao que tudo indica, durante muitos séculos de pesquisa sobre o comportamento da espécie humana, concretizou-se a ideia de que nossa sina biológica, que os mais ousados chamariam ciclo de vida, resumiria-se apenas a quatro eventos citados e difundidos em escolas, igrejas e na interminável fila do açougue da vila: a gente nasce, cresce, reproduz-se e morre, deixando os filhos feitos na terceira fase  ( se bem que muitas vezes a segunda e a terceira fase possam vir a inverter-se, mas não vem ao caso) ao deus dará.
No entanto, teorias um tanto mais sofisticadas, por assim dizer, foram muito além para nos mostrar que estivemos perdidamente enganados acerca desta infame listinha de verbos inerentes ao ser humano; de certa forma, provou-se por a + b, como 2 e 2 são 4, que na verdade nosso ciclo de vida, como dizem os caras de pau, teria um outro ato a mais, nas imediações da segunda fase oficial - o crescer -, apesar de o tempo não ser certeza, ao qual chamamos carinhosamente "perder a graça".
Não se descobriu a princípio com muita exatidão, sob qual circunstância perdemos a graça; muitos diriam se tratar do aniversário que não tem mais importância, outros alegariam que para si, perderam a graça quando deixaram de sair de casa sem guarda-chuva, ou até mesmo houve quem dissesse que nada era mais sinônimo de perder a graça do que o matrimônio da legislação monogâmica, mas o certo é que esta aparentemente simples descoberta causou nos cientistas um grande reboliço, e inclusive, um leque de outros teoremas foi aberto com esta possibilidade, uma vez que a partir deste novo conhecimento, desta verdadeira inovação científica, como já é de se esperar sempre, após qualquer evento terreno, os cientistas e pesquisadores ganharam cada vez mais empregos, enquanto os poetas, roteiristas de esquetes, comediantes e humoristas os perderam à mesma proporção, porque estas são as regras do jogo.
Surgiram enfim, como pipocas estourando na panela, as milhares de vertentes do estudo sobre o quinto possível elemento no comportamento biológico do ser humano. Alguns destes, como por exemplo o estudo acerca do momento da vida em que perdemos a graça, questionavam, como não deve ser difícil deduzir, a data em que esta fatalidade nos acontece.
Foi quando os cientistas dividiram-se entre os que acreditavam tratar-se de um evento localizado entre o nascer e as primeiras palavras, estando portanto antes do crescer na sina da vida, e outros, que juravam de pés juntos que a perda da graça começaria a apresentar seus sinais visíveis após o sexto copo consecutivo de cerveja, podendo-se localizar tanto antes, quanto depois do crescer - ou do reproduzir, já que os descendentes puxam muito da graça humana.
Os votos também variavam entre os que relativizaram tanto a coisa ao ponto de acharem que a perda estaria após a morte. A justificativa dada a esta possibilidade foi a de que "memórias póstumas de Brás Cubas" seria uma obra muito entediante, porém esta teoria foi logo quebrada com o argumento sobre a especulação do estereótipo do cientista que odeia literatura.
De qualquer forma, o mais impressionante em toda essa história incrível continua sendo, sem dúvidas, o fato de que, em absoluto, todos os cientistas empenhados em descobrir mais sobre como, quando, onde e por que o ser humano perde a graça, já haviam perdido as suas graças de forma integral havia muito tempo, e seria de fato dificílimo fazer qualquer piada que fosse, sobre, para ou com eles. Daí então, mais uma vez os poetas, roteiristas de esquetes, comediantes e humoristas, como já é parte do ciclo de vida dessas subespécies quase-humanas, perderam seus poucos empregos (que pode ser o quarto ou terceiro ato na listinha infame de verbos inerentes a estes seres, mas não deixa de se fazer presente).

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