sexta-feira, 22 de junho de 2012

Crises de Maria.

Nasceu, lá numa cidadizinha do interior, uma menininha muito engraçadinha, que apesar de tal qualidade, não era lá a criança mais bonita da maternidade, que a mãe não nos ouça. Foi-lhe dado o nome de Maria, por ser o mesmo da bisavó de um amigo da mãe que morrera naquele mês. Quiseram prestar-lhe singela homenagem no nome, mas como era homem, e a criança não poderia chamar-se Claudinei, procuraram na família do tal, uma mulher com nome bom pra se prestar homenagem. Coisa de gente do interior, oras. Maria. Maria era bom. Maria foi ficando uma menina muito bondosa, gostava de ajudar e não interessava o que tivesse de ser feito em benefício do próximo; ela fazia. Maria na creche era uma benção: cuidava mais das crianças do que as próprias "tias". Quando ganhava moedinha, não era o padeiro ou o sorveteiro quem ficava feliz; eram os mendigos da praça, que iam direto ao bar comemorar a bondade alheia. Não existia uma só pessoa que não amasse Maria na escola. Pelo menos não em dia de fazer atividades em grupo. Maria fazia o trabalho, cozinhava para os amigos, comprava os materiais. Eles se encarregavam de brincar de coisas de adulto. No quarto dela, claro. Um dia, numa dessas brincadeiras um rapazinho muito esperto perguntou se ela sabia aquela brincadeira, em específico:
- Sei não, Marquinhos. Papai diz que menina boazinha não deve, não posso.
- Que nada! A coisa é boa, e eu ia gostar tanto se ocê me fizesse esse favor...
 Não foi preciso muito mais do que esta bendita palavra para dobrar a pobre menina. Depois da brincadeira terminar, Maria perguntou o que era aquilo. Marquinhos dizia apenas que era brincadeira de "emprestar os brinquedos". E ela gostou, tanto do nome quanto da coisa em si. Virou um tal de empresta daqui, não devolve dali; e ela começou a entender as coisas. Percebeu que naquela de emprestar, estava era dando tudo; e aí ficou muito triste, porque descobriu que ele se aproveitava dela. Maria começou a sentir algo que o psicólogo chamou de revolta, mas que ela entendia como vontade de matar todo o mundo, simplesmente.
Um dia, Maria decidiu que não seria mais daquele jeito. O primeiro pedido que lhe fizessem, negaria. E assim fez. Uma nova Maria surgia. Agora, tomava gosto pela coisa; saía negando tudo o que lhe pediam; dinheiro, favor, paciência, empréstimo de brinquedos... Maria tornou-se uma mulher terrível. Fez com que o pai obrigasse o malandro do Marquinhos a se casar com ela, só para poder judiar dele. Descobriu porém que mesmo fazendo isso, não conseguia sentir raiva dele. Podia odiar o mundo todo, mas ele não. E aí ela teve outra crise existencial. Não sabia se odiava aquele homem por ser o único no mundo do qual ela não conseguia odiar de jeito nenhum, ou se simplsmente não o odiava mesmo. Descobriu, para a sua infelicidade, que eram as duas coisas, e ainda pior, para seu desespero, descobriu que amava o infeliz. A essa altura o bichinho andava até meio fraquinho, meio doente, porque ela fazia questão de não lhe fazer comida o bastante.
Olhou para o coitado, jogado às traças, esmilinguido, e sentiu algo lhe cortar o coração. Lembrou-se dos tempos de menina. Lembrou-se de como ele olhava para ela; com vontade de lhe emprestar tudo o que tinha, de lhe dar, se fosse preciso, e sentiu-se feliz. A doce Maria voltou para ela, e ela voltou a ser bondosa como era, vivendo pelo desejo de ver aquele brilho nos olhos do Marquinhos, vivendo junto com ele sempre. O Marquinhos a amava, desde sempre, e sentiu-se igualmente feliz com a maneira com a qual ela o olhava e fazia-lhe uma bela refeição, com a que cuidava dele e lhe emprestava sempre seu amor. Marquinhos aprendeu com a adorável Maria, que era bom cuidarem um do outro, e eles tiveram um filho, a quem chamaram João, em homenagem a um mendigo que pedia moedinhas na praça, bisavô de uma das tias da creche, que era amiga de Maria, e morrera, naquele mês, vítima de atropelamento, mas que devido ao seu nome (Luíza), não seria possível uma homenagem direta. Procuraram, na família da menina, um homem com nome bom pra ser homenageado. Coisa de gente do interior, pois. João era um menino muito esperto, de olhos ativos e de rosto risonho; mas, apesar disso, não era a criança mais bonita da Maternidade. Que a Maria não nos ouça.

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