segunda-feira, 2 de julho de 2012

Solidão Voluntária

Foi acordado pelo focinho do labrador no peito, empurrando-o na cama e pedindo comida. Abriu um olho primeiro, a procurar a luz do sol. Deu de cara com a janela, brilhando como fogo. Fechou o olho novamente. Fez no cachorro um agrado na cabeça, olhou as horas. Hora de sair daquele bloqueio criativo. Levantou da cama, vestindo as calças e dirigiu-se ao banheiro ainda tão sonolento que chutou a quina da mesa de centro. Típico de maus dias. Amaldiçoou toda a sua condição humana de péssimo ex-marido, péssimo pai e bom  escritor enquanto lavava o rosto. Rosto que em tempos áureos fora tão bonito e fizera milhares de lindas moças perderem a cabeça com seus belos modos e belas palavras, e agora parecia tão carente daquele vigor. 
Ele se perguntava todos os dias porque a vida de um escritor é tão solitária. No fundo, no fundo, sabia responder, mas a resposta não era tão aprazível e sensual quanto a poesia que existe em ser solitário. O escritor, quando solitário, é mais bonito. A multidão é aquele seu público, esperando que ele saia da sua toca com algum drama daqueles bem comoventes, se não com alguma comédia genial. O escritor precisava de silêncio, de concentração. O escritor precisava observar de longe, porque se sentisse as mesmas emoções do público, não saberia explicar no estilo próprio, que o púbico gostava de ver. 
Mal sabia o público, que o que lia era exatamente o que sentia, e que o escritor privava-se de sentir por vocação. Acendeu um cigarro, coçou a cabeça. O cachorro não tinha tempo de ver seu desespero, estava muito ocupado com o pote de ração a sua frente. Sentou-se de frente para a máquina, com o intuito de tornar-se ocupado como o cachorro, mas as ideias demoravam a fazer sentido, bagunçadas na mente. Ideias nunca lhe faltavam. O problema era justamente ter ideias em excesso, porque acabava por não conseguir finalizar ao menos uma. Começou, por fim, a escrever sobre uma mulher irritante e egocêntrica. Ironia do destino ou não, como pensou, o telefone tocou, revelando a voz da ex-mulher. Ele não entendia o real motivo contido em ligar para alguém somente para reclamar da vida, e chegou a sentir pena do telefone, que era obrigado a transmitir aquela voz. Pensamento que tempo depois ele achou engraçado e transformou em poesia, talvez. Desligou o telefone mais inspirado a escrever sobre a tal mulher, e no final, com as gotas de ressentimento que eram impossíveis de evitar naquela situação, matou a pobre coitada, violentamente. Sentiu remorso, pois ainda era um homem pacífico, e ela não fora ruim a vida toda. Muitas vezes, aliás, ela lhe fez feliz. Decidiu voltar atrás, pois no que escrevia ainda era possível que fizesse isso, e tirou a morte do destino dela. Por bondade, inclusive, colocou-a no altar com o homem bom da estória, que, de uma forma bem distorcida, era ele. Achou aquilo bizarro, lendo depois. Como é que seria possível aquela coisa toda acabar daquele jeito? Não havia possibilidade de aquele casal existir, ele havia sido extinto há dois anos. 
Bobeira, pensou. Tirou o casamento dela, colocou no lugar um agradecimento sincero, como se ele fosse um herói indiscutivelmente incrível. Riu ao acabar de escrever aquilo, pensando na possibilidade de um dia a ex-mulher agradecê-lo por algo. Deixou daquele jeito mesmo, talvez, se  ela resolvesse ler, entenderia que estava errada. Mas aí, veio o ego, falando alto. Não quis dar o braço a torcer fazendo indiretas para a mulher que um dia amou, mas dizia ser apenas coisa de adolescente. Arrumou milhares de finais para aquela estória, gastando tempo e papel, sem perceber de uma vez, que estava fazendo exatamente aquilo que, a princípio, em toda a sua criação poética de magnitude e orgulho, ele repudiou do fundo da alma: o sentimento, a emoção e a aproximação do escritor a tudo o que é vivo. 

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