quinta-feira, 19 de abril de 2012

Das Reclamações Que Mudaram Vidas



Tomou coragem. Sabia se tratar de algo difícil, sabia que estava entrando em uma guerra. Sabia, acima de tudo, que aquilo levaria horas, como sempre, seria irritante, maçante, terrível. Mais uma vez, se preparou psicologicamente, contou até dez, respirou fundo e pegou o telefone. De qualquer maneira, não poderia ser um domingo pior. A vida já não estava tão boa. Discou. Sentiu aquele arrepio, e aí a música começou. Abriu um pacote de batatas, uma garrafa de refrigerante, jogou-se pesadamente no sofá da sala. A música ainda não irritava. Ainda. No fundo, todos sabem que tudo é uma questão de tempo até que a música soe como provocação aos ouvidos. Sabia disso. Não se importou. Continuou comendo batatas e bebendo o refrigerante, e assim permaneceu nos primeiros quarenta minutos. Para seu espanto, ainda não começara a ficar irritada. Tudo bem. Tudo está sob controle. Mais batatas. Talvez, alguns chocolates. Quando, de repente, de maneira tão inesperada que não tinha palavras para dizer, alguém atendeu do outro lado da linha. Segue o diálogo mantido:
- Rafael, boa tarde, com quem falo?
- Aaah... Juliana, meu nome é Juliana.
- Pois não senhora, em que posso ajudar?
- Eu comprei um aparelho há alguns dias e do nada, ele parou de funcionar, e eu nunca consegui contatar a assistência técnica.- Sim... Senhora.

- E... Então?
- É só isso, senhora?
- Como assim só isso? Você acha pouco a assistência técnica não detectar o problema? O que mais tinha que acontecer pra você?
- Não, senhora, de maneira nenhuma, eu só...
- Ai, pare de me chamar de senhora que isso me irrita, por favor.
- Sim, e ... Desculpe, é... Juliana. Desculpe. É que esse é o modo como tratamos nossos clientes. Desculpe.
- Ah, claro, de maneira muito respeitosa. Me deixam esperando 40 minutos na linha, desligam na minha cara, e ainda querem demonstrar respeito, como não percebi antes! Lamento em lhe informar, Rafael, mas o seu sistema é um tanto contraditório. Ah, tudo bem, vamos com calma. Desculpe, eu me irritei.
- Tudo bem, Juliana.
- Ah, desculpe, eu não queria ser grosseira, desculpe.
- Tudo bem, Juliana, estou acostumado, sem problemas.
- Pare de ser bonzinho! Eu fui mal-educada, seja mal-educado comigo também, vamos!
- O quê?
- Vamos, desconte sua raiva!
- Mas...
- Vamos, ande logo, diga tudo o que pensou!
- Er... Está certo.
- Grite, pode gritar, vai.
- SUA LOUCA! NEURÓTICA, PSICOPATA! SOCIOFÓBICA, MALUCA!
- Pronto?
- hum, não.
- Prossiga.
- DEMENTE, ESQUISITA! DOENTE, PROBLEMÁTICA, FOLGADA, GROSSA, MAL-EDUCADA!
- E agora?
- Mais um?
- A vontade.
- RETARDADA!
- Só?
- É, acho que sim... Me sinto melhor assim, obrigado.
- Ah, por nada.
- HAHAHAHAHA! Você é DOIDA! HAHAHAHAHAHAHA!
Ela riu junto. Riram por vinte minutos consecutivos. Riram mais. Continuaram até o chefe dele voltar. Colocou-a linha na espera e parou rápido para se recompor.
O chefe parou, olhou rapidamente o departamento todo e voltou a jogar paciência no computador. Rafael olhou em volta, não viu o chefe, voltou ao telefone:
- Desculpe, Juliana...
- Onde você estava? O que aconteceu? Por que você desligou?
- Meu chefe apareceu aqui, eu estava rindo muito e...
- Oras! Você não está trabalhando?
- Sim, mas...
- Seu chefe reclama se você trabalhar? É por isso que nenhum atendente de telemarketing trabalha nesse país? Ele briga com você se você atender o telefone? Mais que absurdo!
- Juliana, acalme-se! Eu estava rindo descontroladamente, ele estranharia. Não ofenda meu emprego, por favor.
- Oh, sim, eu generalizei, desculpe.
- Me diga agora, você é casada?
- O quê? Casada? Eu?
- Ótimo. Quer sair comigo hoje?
- Por que eu faria isso? Você nem me conhece, e se eu for na verdade um velho psicopata?
- Tenho o pressentimento de que não é.
- Pressentimento?
- Sim, tenho ótima intuição, nunca falhou.
- Você é gay?
- Acredito que não.
- Por que um homem que não é gay me chamaria pra sair? Eu sou irritante. Pelo menos foi isso que ouvi dos meus últimos 9 namorados.
- Acho que já pude perceber isso. Mas eu arrisco. 8 horas saio daqui. Café?
- Ainda não consegui me acostumar com a ideia de sair com alguém que nunca vi.
- Até que eu não sou feio, viu.
- É, eu também não. Onde?
Se encontraram. Daquele dia em diante, nunca mais deixaram de se encontrar. Brigavam, é claro, diariamente, principalmente durante aquele bendito sétimo ano, as crises, os vasos quebrados na parede, o stress, as crianças, o ciúmes, o tudo aquilo que se ajeitava depois, por vezes na cama, vezes num jantar ou vestido novo, num chocolate, ou até mesmo com batatas e refrigerante numa tarde chata de domingo (que ficava muito melhor com alguns abraços), mas o bendito aparelho, aquele que não foi para a assistência técnica, hoje deve estar por aí, na mão das crianças, ou até mesmo na boca do cachorrinho de estimação da família. Sabe como é, filhotes são terríveis.

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