quarta-feira, 22 de julho de 2015

O mundo e a gente

A gente já viveu tanta coisa
A gente viu nascer tanta morte
A gente já perdeu tanta gente
A gente fraquejou e foi forte.

A gente teve quedas terríveis
A gente se esqueceu de histórias
Já teve dias inesquecíveis
A gente cultivou as memórias.

E a gente ganhou muito também
Experiências das mais diversas
A gente já foi muito além
E a gente traçou trilhas dispersas.

Teve dias que a gente chegou
A achar que não aguentava mais
A gente até tentou se matar
E a vida não nos deixou jamais.

A gente procurou pelo em ovo
Encontrou chifre em cavalo
De fugir tanto do que era novo
A gente já acabou por amá-lo.

E essa é a história da vida
Que até hoje a gente viveu
Depois disso é a passagem de ida
Direto daqui pro museu.

terça-feira, 14 de julho de 2015

O fabuloso mundo das pessoas que enxergam mal

O mundo é um lugar cheio de pessoas divididas em dois grupos distintos, no que diz respeito a uma boa visão; existem pessoas que enxergam bem, e existem pessoas que não.  Houve um tempo em que, detectando esta ligeira diferença, as pessoas foram classificadas de acordo com seus grupos. Infelizmente,  para os membros do segundo grupo, a vida nem sempre foi fácil: as placas de trânsito, as letras miúdas, as luzes acesas sem necessidade, dentre tantos outros adventos terrivelmente cruéis tem feito, desde sempre, da vida dos que vieram ao mundo com alguma sorte de problema de visão um verdadeiro caos.
Todavia, como nada pode ser de todo ruim, devemos for fim assumir certas vantagens em ser um genuíno membro do fabuloso mundo das pessoas que enxergam mal. Se na escola, algumas crianças sofrem para adaptarem-se a seus pequenos óculos coloridos com cordinhas amarradas ao pescoço, e até recebem por vezes, apelidos não exatamente carinhosos por isso, mal sabem elas que a vida lhes reserva grandes e incríveis benefícios, não apenas na vida adulta, mas até mesmo durante todo o seu período infantil, fofinho e pimpolho.
Por exemplo, após assistir filmes com espíritos malignos e monstros feios: um dos pontos mais benéficos de não se enxergar com perfeição é que nenhuma pessoa que enxerga mal vê figuras estranhas sorrindo diabolicamente nas janelas e portas entreabertas por aí. Isso, é claro, porque é difícil para elas até mesmo enxergar as janelas e portas, e portanto, discernir a fisionomia de quem estiver lá fica, realmente, impossível.
Ainda sobre fisionomias, e aliás, partindo deste mesmíssimo princípio, as figuras que se vê, quando se vê mal, são ligeiramente distorcidas; ou seja, é muito mais fácil ver a beleza, sendo um pouquinho otimista, onde não há. Apenas este pequeno fato já garantiria ao mal enxergador, uma porção de vantagens em sua vida social, não apenas de ordem financeira (não é necessário gastar tanto com álcool até que as pessoas da festa fiquem muito bonitas, pois os fatores externos como elas estarem bem arrumadas já otimizam em duzentos por cento sua bela aparência), mas também, como retorno ao posicionamento estético que se tem para com as pessoas: as pessoas que não usam óculos sempre tendem a acreditar que você seja muito mais inteligente do que realmente é, simplesmente por viver atrás de duas grandes lentes lustrosas.
Portanto, caso você faça parte deste (não tão) seleto grupo de pessoas, saiba quais cartas você tem na manga. Não perca tempo (mas claro, não é só porque uma boa armação quadrada e tradicional sempre lhe garante confiança e respeito na hora de tratar sobre qualquer assunto, que automaticamente você só dirá coisas muito inteligentes. É preciso manter a discrição). Para além da socialização em ocasiões especiais, no entanto, ser parte da população que força os olhinhos para ler o letreiro dos ônibus pode trazer esta adorável forma de quebrar o gelo nas situações cotidianas, se for o caso.

 É comprovado cientificamente pelos renomados Observadores da Esquina que, frases simples como “meu deus, o que diabos está escrito ali?” ou  “Não consigo enxergar nem a cor desse ônibus, você poderia me dizer se é o número tal?” ativam rapidamente terminais de solidariedade no cérebro humano. Além disso, empregando o tom certo, podem soar cômicas. Daí, é só torcer para não ser aquele o seu ônibus,  nem o da pessoa com quem quiser bater um papo descontraído. Tomar como estimativa que é você quem enxerga mal pode trazer grandes alegrias. Basta saber usar suas oportunidades, e o mundo se abrirá lindamente, colorido e nítido, cheio de luzes e detalhes (que você nem vai conseguir enxergar direito, mas não importa), exatamente como duas lentes limpinhas. 

sábado, 11 de julho de 2015

Sexo, Violência... E tudo isso aí que você pensou, mesmo

O mundo natural evolui. Do caos e das cinzas, projetam-se formas, e das formas projetadas, surgem projetos pensados. E no movimento contínuo de ida... E vinda... A natureza se expande e gera. Quase da mesma forma, todavia de maneira um tanto menos poética e mais patética, o mundo social também evolui. Isto porque de natural a social, os mundos mudam drasticamente, já que suas diferenças vivem a linha tênue entre natural e humano.
Por exemplo, o natural simplesmente acontece. Exatamente assim, sem grandes mistérios. Enquanto o humano, ali parado no balcão do bar, aguarda um líquido que o torne menos teórico, tendo a mesmíssima finalidade do natural, que no entanto, já aconteceu e agora está deitado com as mãos atrás da cabeça, bastante relaxado.  No maravilhoso mundo natural, tudo é mais fácil. E, embora auto-proclamem-se racionais os seres humanos, seu tedioso mundo não tem absolutamente nada tão racional assim. Todos os seus grandes assuntos são muito complexos para os pequenos, todos os seus assuntos menos complexos são muito infantis para os grandes. E assim, flutuam perdidos sobre um mar de angústias profundas, no qual ninguém tem de fato o mínimo interesse e coragem necessários para mergulhar de cabeça.
Um fato verdadeiramente intrigante sobre o mundo social e suas contradições racionais-atrapalhadinhas, por outro lado, está no motivo pelo qual, nas mais diversas sociedades, difundiu-se através dos séculos a negação do sexo e o espanto que ele incompreensivelmente causa, ao mesmo tempo que a violência e a intolerância caminham tranquilamente impunes pelas ruas das grandes cidades (e das pequenas também, que fique bem claro). De alguma forma muito bizarra, está desde muito cedo estampado em letras coloridas e fofinhas, em todos os livros de contos infantis, que bater e apanhar são ações perfeitamente normais, contanto que não sejam praticadas em longas (e possivelmente prazerosas) sessões de sadomasoquismo. É um motivo religioso.
Não exatamente um motivo religioso específico, não, não. Trata-se de um motivo religioso humano. Um motivo religioso humano geral. Porque dentro da sua racionalidade fajuta, o humano ao balcão do bar necessita violentar-se da forma mais desesperada quando lhe surge o mínimo pensamento tranquilo. O homem social está terrivelmente fadado à sua não tranquilidade, ao ato de acordar no meio da madrugada, suando frio e ofegante, após mais um pesadelo sangrento. Ao passo que, ficar acordado, suando quente e mais ofegante ainda, envolto em afeto, é um ato de concórdia que não pode suportar, simplesmente. Apaixonou-se perdidamente pela violência, pela guerra e pelo conflito. Apaixonou-se pelas armas de fogo. O fogo natural já não lhe parece tão interessante, e seu tesão reside agora na tensão, quando anda por uma rua deserta e escura de noite, e teme os mais variados tipos de perturbação da paz que ele odeia.

O mundo social está perturbado. Ou talvez ele tenha sempre sido perturbado. E gosta tanto disso, que prefere educar as crianças para a agressividade a simplesmente ensiná-las a aceitarem o mínimo realmente natural de suas composições (no que, por sinal, consistem as diferenças básicas de cada indivíduo, dentro dos limites da espécie já modificada pela evolução). A aceitação e o bom senso, ao que tudo indica, não fazem parte do plano de ensino no mundo social, que tanto se vangloriava por tê-los como vantagem sobre o natural. 
O natural? Bem, este dorme agora, placidamente (e de conchinhas), sem medo algum de não parecer “natural” aos olhos dos outros.